Não vou revelar nenhuma novidade, mas já toda a gente sabe que a este quiosque se deslocam vários tipos de humanos, que formam uma razoável amostra daquilo que é o povo português e quiçá o povo não português também. Também não estou a dar novidade alguma se disser que o humano tipo que assenta aqui arraiais é do sexo feminino, anda na casa dos sessenta, tem um metro e cinquenta e dois, gosta da Maria, da TV 7 Dias, do Correio da Manhã e do Record, apresenta uma ou outra lacuna a nível físico ou psicológico ou ambas, e usa bigode.
São estas lacunas que pretendo abordar na lição de hoje, particularmente a lacuna ao nível do ouvido. A coisa divide-se em duas sub-lacunas: a sub-lacuna dos que não ouvem o que as pessoas lhes transmitem devido a uma disfunção cerebral (do tipo “já ontem e na semana passada lhe disse que este quiosque não está interessado em emprestar-lhe 500 euros, mesmo que me jure pela saúde da sua rica filhinha que me vai fazer 6 transferências bancárias de 100 euros nos próximos 12 meses”) e a sub-lacuna dos que não ouvem o que as pessoas lhes transmitem porque simplesmente apresentam uma disfunção ao nível de um dois timpanos ou lá que o valha.
Não é fácil lidar com estes últimos: para haver uma conversa de surdos basta que um dos intervenientes seja surdo, já dizia alguém que agora não me lembra o nome. Geralmente, aquilo que poderia ser uma agradável conversa, transforma-se numa gritaria em que ninguém se entende, bastante incómodo para quem passa e dissuadindo os humanos de bigode de metro e cinquenta e dois que se aproximam, de levar a Maria ou o Record. Digamos que não é muito educado responder à pergunta “Que revistas sairam hoje, menino?” com um triplo “A TV MAIS E A CARAS!!!!!” e em que do outro lado a única reacção é uma mão em forma de concha aconchegada ao ouvido disfuncional acompanhada de um “Deixe lá, hoje não levo nenhuma, estou a ouvir um bocadinho mal. Mas levo o Record. Quem é que joga hoje?”. Segue-se um “O BENFICA!!!!” repetidas vezes até parecer que estou em pleno estádio da luz, bem no meio dos Diabos Vermelhos. O humano com dificuldades em captar gritos a 20 centímetros de distância não desiste e está mesmo empenhado num diálogo que nunca vai acontecer. Aquela disfunção é com certeza uma coisa recente, o humano nem ler nos lábios consegue. E passo rapidamente ao “sim” e “não” com a cabeça, e outros movimentos gestuais mais apropriados ao humano em questão.
A cena tem-se repetido quase diariamente. É um questão de tempo até surgir um “diálogo” surreal. Mantenham-se atentos.
O episódio que se segue, que vou tentar reproduzir da melhor forma possível, passou-se há cerca de uma semana. A tentação foi deixá-lo escrito para a eternidade assim que o genérico começou a passar em rodapé, mas uma boa dose de precaução levou-me a ter que aguardar um razoável espaço de tempo, não fosse a coisa passar num qualquer programa de apanhados na tv. Parece que não aconteceu e como tal vamos a isto.
Protagonistas: eu, um velhinho na casa dos 80 e sua factura de electricidade.
V80 – Boa tarde, é para pagar esta factura
A – Sim, senhor. (…) Mas olhe... esta factura é paga por débito directo...
V80 – Débito directo? Ok, pode ser.
A – Não está a perceber... É paga através da sua conta bancária.
V80 – Da conta bancária... hmmm... Não há problema, pode proceder ao pagamento.
A – Pois, mas eu não posso proceder ao pagamento. O seu banco é que vai buscar o dinheiro à sua conta para efectuar o pagamento.
V80 – O meu banco é que faz o pagamento?
A – Não, o senhor faz o pagamento da factura através da sua conta bancária.
V80 – Então tenho que ir ao banco...
A – Não, não é necessário. O banco tira-lhe o dinheiro da factura automaticamente.
V80 – Ai é?
A – É.
V80 – Mas tenho que ir ao banco para eles pagarem automaticamente?
A – Não, o senhor já deu autorização para lhe retirarem esse dinheiro...
V80 – Como é que você sabe??
A – Eheh... Como lhe hei-de explicar isto?... O senhor paga esta factura através do sistema de débito directo. Isso significa que deu autorização ao seu banco para lhe retirar o dinheiro referente ao valor dessa factura.
V80 – Pois, compreendo... Então não tenho que pagar nada.
A – Bem, o senhor vai pagar essa factura, mas não tem que a pagar aqui porque...
V80 – Então tenho que ir ao banco!
A - (…) Pois, se calhar é melhor ir ao banco que eles lá explicam, são pessoas muito prestáveis e com uma paciência sem limites...
V80 – Então vou lá, aproveito e pago a factura.
Depois a coisa entrou em loop. As mesmas perguntas sucediam-se a um ritmo diabólico, enquanto eu punha a cabeça de fora à procura das câmeras.
Não sou menino para me lembrar com grande precisão do que sonho. Sei apenas que a tendência é para me lembrar com distinta clareza dos sonhos que incomodam. Os outros, os que correm bem, são embaciados, a preto e branco, sem banda sonora e muito pouco claros: nunca fica a certeza se eu e a Gwyneth Paltrow partilhámos os lençois ou se apenas frequentámos o mesmo bar. Como se não bastasse, no ar estabelece-se a desconfiança se era de facto Gwyneth Paltrow ou apenas a sexagenária do 3º esquerdo. Talvez seja isto que impeça que, mesmo nos dias em que Gwyneth Paltrow me chega aos lençois, a coisa vá para além de um breve enrolanço de adolescentes, inoportunamente interrompido pelo despertador ou pelo miar do gato da sexagenária do 3º esquerdo. Não é fácil viver com esta frustração, mas uma pessoa habitua-se, desde que não feche a pestana com grandes expectativas para o sonho que se avizinha.
Os sonhos que me incomodam são mais chatos. São mais chatos porque acima de tudo incomodam, como já tive oportunidade de dizer. E teimam em soltar-se da memória matinal, são os sonhos pega-monstros que se colam ao cérebro e moem um tipo para o resto do dia. Há um frequente, nao que seja repetitivo (a criatividade é um dom que se prolonga pela noite dentro), mas que obedece a um padrão, em que me vejo em grandes dificuldades perante uma razoável audiência. Numa das variações apareço num jogo de basket (desporto que pratiquei durante anos) e sou simplesmente incapaz de driblar a bola. Ela vai fugindo, fugindo, até que sai pela linha final, para desespero dos meus colegas de equipa. Noutra variação, durante um concerto, sou convidado para subir ao palco e tocar guitarra (no qual sou amador, mas o sonho já me aparecia antes de saber o que era um acorde), mas não sai qualquer som, e ainda bem porque tenho sempre a certeza que se saisse alguma coisa, o público não iria reagir muito bem. Há um outro em que não consigo registar as vendas pelo leitor de código de barras, os clientes cansam-se de esperar e vão-se embora. Não vão chateados, voltam no dia seguinte e acontece a mesma coisa, e assim sucessivamente até que acordo. Na última variação - e é uma entrada nova - estou no MasterChef, tenho à minha frente uma bancada cheia de ingredientes e não consigo fazer mais que um sandes de presunto, uma enorme sandes de presunto que ocupa toda a bancada. A sandes não chega a ser avaliada pelo juri, que está com mais vontade de me comer do que à gigantesca sandes de presunto. E acho que é tudo. Isto parece-me muito simples de decifrar. Agradeço que me resolvam a situação, principalmente aquela parte em que não me deixam fazer coisas bonitas com a Gwyneth Paltrow.
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