Quarta-feira, 17 de Junho de 2009

O despertador

Passei ontem parte da noite na prisão. Isto significa que das 7 horas de sono que reservo diariamente, cerca de metade foram muito mal gastas, graças a coisas.

Para aqueles que já se sentem invadidos pelo pensamento “Na prisão? Eu bem dizia que dali não podia vir coisa boa”, deixem-me clarificar que para alguns, prisão é ser dono do seu próprio negócio, trabalhar 28 dias por mês, mantendo as portas abertas durante 363 dias por ano, e chegar ao fecho de contas e poder gritar bem alto: “sobrevivi, e com o que amealhei com esta porra, numa homenagem a todo o suor que por lá deixei, desta vez vou abrir os cordões à bolsa e oferecer a mim próprio uma pen de 256 megas”. Quem diz que um quiosque é uma prisão é bem capaz de ter razão. A recompensa é que eu vou para a prisão, sim, todos aqueles dias do ano, mas com um sorriso tatuado no rosto. E isso faz toda a diferença.

Há excepções, claro. A noite de ontem (sim, a noite) foi uma delas, e teve origem no choque tecnológico que o quiosque foi quase que forçado a adoptar, tendo em vista os objectivos para a época 2009-2010. Durante o processo de inclusão de um ecrã panorâmico dentro de tão humilde estabelecimento, a registadora assumiu um valente complexo de inferioridade e entrou – julgo que propositadamente – em coma profundo, obrigando à sua substituição por um complexo emaranhado de fios e componentes, ao qual alguns dão o nome de sistema informático.
Ora, o recheio tornou-se assim, de um momento para o outro, algo apetecível ao senhor doutor larápio, pelo que a trilogia tecnológica foi completada com a instalação de um sistema de alarme.

O filme começou por volta das 2.30 da manhã, em pleno sono REM. Toca o telefone. Há duas hipóteses. Ou há lá fora um amigo com os copos, ou algo se passa no quiosque. Não há muito por onde escolher, se tal fosse possível. São duas variantes que partilham entre si a péssima ideia de dar cabo da noite a um gajo. Ou dois. Ou quatro, porque a tecnologia quando toca, toca para todos.

Portanto, a coisa toca, e o tal sono REM, que tem a particularidade de me paralisar os movimentos da ponta do cabelo ao fungo do dedão do pé direito, impede-me sequer de tentar alcançar a tecnologia móvel. Segundos depois, refeito do choque tecnológico, alcanço a coisa, que me diz que lá fora não há amigos com os copos e ideias parvas na cabeça. Algo se passa no quiosque. Devolvo a chamada. “Sou tal e tal”. “Nós somos tal e qual e a nossa palavra-chave é blá blá. Qual é a sua?”. “A minha é blá-blá”. “Ok, tal e tal, o alarme tocou, o senhor não atendeu, por isso ligámos ao nº2 da lista, o senhor coiso e tal”. “Boa. Já acordaram dois. Vou lá ver o que se passa…”. Ligo ao senhor coiso e tal. “Ligaram-te? Pois. Vou lá ver o que se passa”. Fui. Mal, mas fui. O meu optimismo natural dizia-me que nada se passava. Estava certo. Tudo intacto. “Coiso e tal, tudo ok”. Devolvo depois a chamada original. “Palavra-chave blá-blá. Tudo ok. Deve ter caído qualquer coisa, sei lá”.

São 3 da manhã. Devo ter adormecido às 3.25. Às 3.30 toca outra vez o móvel tecnológico. Palavra-chave para aqui, palavra-chave para acolá, e passa-me pela cabeça que se alguém resolve interceptar esta conversa de malucos ainda me levam para Guantanamo no vôo das 5. “Tal e tal, o alarme voltou a tocar, mas agora num sensor diferente”.
Tira pijama, veste calça e casaco. Uma pessoa adapta-se muito rapidamente a estes rituais madrugadores, é o que vale. Desta vez vou lá dentro. Ligam-me os gajos outra vez. “Já verificou?”. “Sim, tudo ok… hmmm… está aqui um bicho”. “É voador?”. “Não não! Moro aqui perto e tenho passada larga, sou bast…”. “O bicho é voador?”. “Ah! Sim sim, sem dúvida”. “Ok, está explicado…”.

A minha missão passava agora por assassinar o insecto que me havia lixado a noite.

São quase 4 da manhã. Dentro do quiosque, há um gajo (que sou eu), armado com uma vassoura, a tentar acertar num bicho voador, desesperado por salvar o que lhe resta da noite. Por favor, não imaginem a situação. 4 da manhã, um só olho aberto, uma vassoura na mão, e dezenas de investidas num tecto em risco de ruir. Que tal?

É possível que tenha sido enganado. Pensava que tinha comprado um sistema de alarme e parece que afinal me venderam um despertador. Mas que raio de choque tecnológico é este, tão eficaz a pôr de pé mais de metade de uma família, mas incapaz de distinguir um larápio de um insecto?
publicado por ardinario às 01:23
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Quinta-feira, 4 de Junho de 2009

Peço desculpa, mas tenho estado ausente para informatização e televisão

Quem já teve o privilégio de passar um dia atrás do balcão de um quiosque poderá facilmente constatar que não basta pairar sobre a banca, de perna cruzada e olhar compenetrado na Lux enquanto se despacham uns quantos Records, Marias e Gigantes, para chegar ao final do dia e poder afirmar com convicção que a missão foi cumprida. O ritual de venda de um simples jornal ultrapassa muitas vezes aquela curta troca de palavras que permite satisfazer simultaneamente o cliente e o vendedor. Mesmo após a transacção ficar concluída, ou até mesmo antes que alguma das partes abra a boca, existirá sempre num quiosque um código que pressupõe a existência de um diálogo suplementar.

Suponho que não existam estudos sobre o tema, mas não andarei muito longe da verdade se afirmar que uns bons 20% dos clientes que poisam num quiosque esperam um pouco mais de interacção para além da simples troca de dinheiro por géneros, seguido de um bom dia, obrigado e volte sempre . Esse cliente só sai verdadeiramente satisfeito do quiosque se vir partilhada a sua indignação pela mais recente reforma do governo ou se conseguir ganhar pelo menos um adepto nas imediações que corrobore a sua adoração pelo mais mediático casal do actual reality show da tvi.

Ora, acontece que quando não há clientes em fila de espera junto ao estabelecimento, ou quando não se vislumbra vivalma disposta a dar crédito a um qualquer comentário adjacente, esse papel de partilha/concordância/veneração sobra invariavelmente para a “Judite de Sousa que não concluiu os seus estudos” que se encontra atrás do balcão. É então aqui que entra em acção todo um rol de conhecimentos que vai desde o último episódio da novela da tarde até ao penalty que ficou por marcar a favor do Sporting, sem esquecer nunca os devaneios da mais recente relação amorosa de Elsa Raposo.

Não é, de todo, uma tarefa fácil. Exige trabalho de casa e de quiosque, altos níveis de concentração, discurso adequado às necessidades de cada cliente e elevada capacidade de resposta. Em caso de momentânea atrapalhação, ou má preparação na matéria abordada, atirar um Ora até que enfim que encontro alguém que partilha a minha opinião poderá ser a salvação. Além de que é garantido: o cliente volta no dia seguinte.

Originalmente publicado na Revista Atlântico em Junho de 2007
publicado por ardinario às 19:41
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